Depois de dez anos sem ver o pai, o enfermeiro e chefe de cozinha aposentado por invalidez Sérgio Pereira da Silva, de 52 anos, voltou a abraçá-lo no último dia 24. O encontro aconteceu no Centro Pop Matriz - uma das unidades da Fundação de Ação Social (FAS) exclusivas para o atendimento de pessoas em situação de rua. Há três anos, a equipe técnica do local faz o acompanhamento socioassistencial de Sérgio.
Além do pai de Sérgio, seu Liberato, o encontro reuniu a mãe, dona Francisca, os irmãos Adriana e Jaime e a mulher dele, Lucimara, que ainda não conhecia o cunhado. Todos vieram da cidade de Alta Floresta, norte do Mato Grosso, de onde ele saiu há 35 anos expulso pela homofobia, então comum entre os moradores da cidade. “Até óleo e mangas verdes me atiravam na rua”, relembra Sérgio, que também se recorda de ser recusado para três vagas de emprego, no mesmo dia, devido à orientação sexual.
O objetivo, agora, é que Sérgio volte a morar na casa dos pais. “O passado ficou pra trás. É muita alegria no coração desde que a gente soube que ele estava vivo. A gente veio pensando que ele ia voltar junto”, disse seu Liberato. Ele já tinha planejado o retorno de parte do grupo, que veio em um só carro, de ônibus.
Porém, como o reencontro foi mais rápido do que poderia imaginar, Sérgio ainda não teve tempo de cumprir a rotina de exames e acompanhamentos médicos para seus problemas de saúde, que faz no Centro de Orientação e Aconselhamento (COA) da Prefeitura e no Hospital Erasto Gaertner. “No final de outubro estará tudo organizado”, diz Sérgio, referindo-se aos agravos de saúde que removeram a última pedra para tentar rever a família. “Quero viver o tempo que eu tiver pela frente com qualidade, em paz com as pessoas que eu gosto”, disse.
O reencontro
A vinda do grupo mostra que, durante todos esses anos, a família também não parou de pensar em Sérgio. “São 35 Natais, 35 Dias das Mães tristes, separados”, observou dona Francisca, que agora pode abraçar e beijar o filho. Para isso, foram vencidos quase 2.500 quilômetros e mais de 30 horas de viagem.
A saga começou no dia seguinte ao telefonema da assistente social Vanessa Siviero, do Centro Pop, a quem Sérgio manifestou a vontade de retomar o contato com a família e repassou as pistas de que dispunha para restabelecer o elo. Em busca de ajuda para encontrar a família, Vanessa contatou o órgão de assistência social de Alta Floresta mais próximo do endereço que Sérgio lhe passara, que fez o recado chegar à família no mesmo dia.
O retorno veio uma hora depois, por um emocionado telefonema em que pai e filho voltaram a se falar. “Nunca que eu poderia imaginar a vinda deles pra me buscar. Fiz uma tentativa e até esperava a indiferença. No meu coração, não guardo mágoa. Quero voltar e ser socialmente útil”, disse Sérgio.
Altos e baixos
O drama familiar começou por causa de um mal-entendido que Sérgio, então com 13 anos, não teve oportunidade de esclarecer. “Fui abusado por um homem que trabalhava na mesma fazenda que nós, mas meus pais acharam que era sem-vergonhice. Não era nada disso: na época, eu nem pensava sobre ser gay e o tema abuso não era discutido. Falei tudo isso para o meu pai, no telefone, pela primeira vez, e ele ficou surpreso”, explica.
Apesar da falta de apoio familiar ou de amigos, Sérgio foi sozinho para Campo Grande e conseguiu estudar com apoio de pessoas que reconheceram seu potencial e o ajudaram com bolsas de estudo. “Fiz faculdade de Enfermagem lá e, aqui em Curitiba, de Gastronomia”, explicou.
Apesar do esforço e das oportunidades, a autoestima arranhada se manifestou por meio da dependência química, que levou Sérgio para a prisão - local onde viu o pai pela última vez, durante uma visita. Foram quatro anos preso, época em que contraiu o vírus HIV.
Saiu da prisão e, há sete anos, tem a dependência sob controle. Com a ajuda da FAS, que entrou na sua vida há 13 anos com a oferta de vaga em abrigos para que não ficasse na rua, conseguiu se aposentar e alugar o pequeno quarto no Centro cuja chave está prestes a entregar. “Mais do que o atendimento profissional, o pessoal da FAS - toda a equipe - me dá amor. São meus amigos, meu tesouro. O que eu sou também é fruto do trabalho deles”, diz.
Resgates de vínculos familiares como o de Sérgio já somam 36 casos somente neste ano. Em 2017, foram 60. A FAS também devolve para suas casas pessoas com problemas cognitivos, que saem de casa sem documentos e vão parar em suas unidades. Situações como essas são mais frequentes. Foram 555 casos em 2017 e este ano, até agora, 415 retornos.